quarta-feira, 23 de abril de 2014

Insolência



A dor me consumia por dentro...Como se filetes de minha carne fossem tirados,a cada movimento. Sempre fui tão controlado quanto a minha mente,estudei tanto,me dediquei tanto...Acabei sendo açoitado pelos meus próprios pensamentos.
O físico já estava prejudicado pelo imaginário.
Passava meus dias em atividades corriqueiras da vida comum,e as noites,a olhar para dentro de mim...Eu nunca quis isso.
O ambiente solitário do apartamento na Zona Norte,me fazia crer que em algum dado momento,decidiria então por eliminar-me. O jogo da sobrevivência já não estava mais tão excitante,meus 45 anos começavam a pesar.
Já havia passado da crítica idade de Cristo,mas esse tempo vivendo pelos outros me fez esquecer um pouco de quem sou,e de quem escondo,aqui dentro. Atualmente,essa parte veio me dando sinais de que não deixaria nada passar...
Acordei ás 5:00pm,com falta de ar. Não tive pesadelos,mas sim,visões. Como flashs de memórias vindo despretenciosos. O início de tudo...
Minha mãe costumava me embalar ao som de músicas ambientais,provindas de várias regiões da Europa. Nossa ascendência era germânica,e ela procurava transmitir um pouco do que meus avós e os anteriores a eles,tinham de história.
Quando eu era criança,não entendia muito bem o significado do simbolismo por trás de cada nota.
Desde pequeno,não era muito percebido em sala de aula,a não ser pelas altas notas nas matérias,principalmente as ligadas as áreas de exatas,e claro,geografia e história. Digamos que eu tinha o dom de ser a escuridão,por si só.Sendo assim,eu ficava muito bem em um canto. Se observassem com atenção, sempre estive ali. Meus olhos azuis não me facilitavam as trilhas dos amores juvenis com as meninas,muito menos minha altura,e os cabelos loiros.
Na adolescência deixei os cabelos crescerem,e a barba,conforme desenhava-se em meu rosto.
Esse período não foi muito diferente do anterior...Apenas estava crescendo ainda mais,e me sentia estranho por dentro. Nada se ajustava...E não era algo comum,pelo menos,não comigo.
Então chegou a escolha do vestibular...Resolvi prestar para Medicina. Meus pais nem acreditaram naquilo...E eu surpreso do porquê.
Prossegui no objetivo,mas nem isso me animava. Continuei a dedicar-me,fui um dos melhores da turma,consegui ultrapassar certos limites,dava orgulho aos professores...E então,veio a Residência. Passei com maestria,e estava pronto para o mercado da saúde.
Era jovem,minha estrutura havia se modificado e os anos de remo na universidade me fizeram muito bem ao corpo. Mesmo assim,minhas experiências sexuais eram incompletas.
Até conhecer o Maurício,e seus contatos na noite...
Ele me levou a lugares onde jamais imaginaria estar. Então pude explorar-me mais...Pude infligir tudo aquilo que sentia,em outra pessoa,de forma consensual.
Não entendia a razão pela qual sentia tudo aquilo. Tive um bom berço,nada traumático aconteceu comigo ao longo do tempo que chegasse ao extremo. As coisas surgiram na minha vida de forma natural,conforme eu ia evoluindo.
Mas esse lado dentro de mim,gritava o mais alto som. E eu não conseguia dominá-lo!
Me aprofundei tanto até conhecer Carmília. Legítima ruiva,pele branca como lençóis de seda,a boca carnuda como o desejo,curvas exuberantes,distribuídas em 55kg.
A primeira vez que a vi foi submersa na banheira de sangue,da área privada do clube. Aquilo fez elevar-me até o limite do prazer...O Nirvana. Só de observá-la banhar-se naquele sinal de brutalidade,eu sentia meu corpo latejar.
Ela olhou pra mim,eu não conseguia pensar em mais nada.
O vício nestas práticas me levaram a ter uma relação intensa com ela. Relação essa, 24/7. Ela fazia tudo que eu desejava. Se dedicava completamente. Aquele seu aspecto frágil,me fazia ter outros tipos de fantasia,mas eu não conseguia fazer algum mal a Carmília...Tão bela,tão voluptuosa,tão esperta,tão única.
Um dia resolvi confessar-me...E como resposta,fui ignorado por 5 dias. Voltou a procurar-me e dialogamos intensamente. Ela me trouxe um presente.
Deste presente,seguimos causando o caos de nossos universos internos,aos que jamais entenderiam. Aos que não pediram para aquilo acontecer.
Fizemos isso durante alguns anos,sem nenhum rastro.
Carmília me deixou...Nua em minha cama,cheia de pétalas de rosas,banhada em sangue. Mas dessa vez não era sangue falso.
Ela proferiu sua sentença em um gravador.
Tudo que me restou dela,foi isso.
Ela está a minha volta ,todo momento. Ela fala comigo,de formas sensoriais. Ela me pede para unir-me a ela...E toda noite,isso se torna ainda mais forte.
Passei a fazer plantões de madrugada,também. Pra conseguir fugir disso.
Até que nos encontramos de novo, em um leito de morte na ala L7.

Ela observava calmamente, o falecimento daquela senhora,que estava antes na UTI.
Virou para mim e disse:
-Hoje você não fugirá de meus encantos,nem de meus cuidados...

Corri,pois por mais que desejasse isso,sabia que não era racional o que estava acontecendo.
Não resolveu nada.

Me tranquei em meu escritório,a escuridão retornou para abraçar-me.
Volto a ele repetidas vezes,depois de ter longas conversas com ela...
Vou trabalhar todo dia,mas as pessoas não me cumprimentam,e apenas alguns pacientes conversam comigo.
Percebo que os que conversam comigo,a maioria falece tempos depois.

Onde estou?















Um comentário:

  1. Muito bom! Adorei a maneira sutil como tudo foi se desenvolvendo, introduzindo uma surpresa atrás da outra. Captou bem a atmosfera de decadência e horror contemporâneo de uma maneira elegante, sem exageros. Espero ver mais histórias assim!

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Dê-me tempo e serei clara, dado o tempo você entenderá...